quinta-feira, 10 de março de 2011

poema


O PAI NAS FOTOGRAFIAS
Apparício Silva Rillo

Revejo as fotografias de família
- um vezo antigo de exorcização,
caça do tempo perdido
como nos romances franceses de Marcel.

A tarde é úmida sob o gris das nuvens
e é em tardes assim que me descubro
nos perfis esmaecidos em cinzentos
dos que, antes de mim,
sentaram à mesa de jantar de onde vim:
o pão, o vinho,
os talheres em cruz.

Na mais antiga das fotografias,
meu avô paterno:
sua barba de imperador
de um condado de léguas na Fronteira
onde vacas pariam,
onde pastavam bois e voavam cavalos.
A seu lado
minha avó dona Chica e seus traços de bugra
(um desenho do álbum de Debret).
Ao seu redor crianças:
meu pai, minhas tias e tios.
Ao todo onze do sangue desse par,
solenes
como estátuas de praça,
olhando firmes
para o ponto de fuga de meus olhos.

Na mais antiga das fotografias
há um tempo parado
como um vagão sobre o trilho
sem a locomotiva que o tracione.
Debruns de traço leve a emoldura-la
E um timbre onde se lê:
"Bartolomé Sambolino, Artista Photografo".

Dela,
pelo tempo nos relógios de algibeira,
cresceu meu pai noutras fotografias.

Nesta que vejo,
moço e estudante entre colegas.
Noutra,
(para noiva Lélia)
de perfil:
o crespo ondeado dos cabelos
a morrer na gola alta da casaca;
o ângulo do nariz sobre o traço da boca;
os óculos de lentes redondas, a haste fina
cortando a costeleta antes da orelha.

E outras fotografias.
A terceira e a quarta,
a undécima delas - muitas!...
Em todas, a boca severa
o lábio junto ao lábio,
o avesso do riso...

Eis, e de repente,
a fotografia do ano antes da morte;
o câncer por detrás da boca amarga,
os olhos em contida angústia me fitando.
(De todas,
a que me dói como um carvão aceso
na palma desta mão crucificada
que a sustenta como a um Cristo de carvão).

Ajusto o foco...
Dimensiono as lentes...
Fotografo a lembrança...
Nunca me lembro de meu pai sorrindo.
Se procuro acreditar que riu um dia
não terá sido nas fotografias!...

Os documentos são estes que revejo
na tarde em descendência para o chumbo.
Neles,
neles todos,
a tua boca amarga, pai, a esconder os dentes
que são o piano onde o riso tamborila
quando de adentro o coração comanda,
a música e a dança!

Não tenho ouvidos para ouvir-te o riso
nem olhos de memória para tê-lo.
E isso dói, pai...
É brasa viva na mão crucificada
- o fogo e sua roca de trabalho.

Sim, eu sei que tudo isso,
todo esse discurso de catarse,
poderia caber num só conceito:
- meu pai não ria nas fotografias
e eu não tenho memória de seu riso.

Mas às vezes, pai,
é preciso derramar esta angústia, de dentro!...

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