sexta-feira, 1 de abril de 2011

Duas datas


Colmar Duarte

Na pedra somente o nome
e duas datas, mais nada.
Nas datas, os dois sinais:
para o nascimento, a estrela,
a cruz...para o nunca mais.

Estrela e cruz, duas datas

e uma vida entre as estacas
que marcam o início e fim.
Como a cancha de carreira
de algum bolicho tapera,
coberta pelo capim,
onde se vê - de passada -
alguma estaca cravada,
marcando a cancha, ainda assim.

O partidor é uma estrela,

a cruz é o laço final.
Entre as duas, tanta estória
que o tempo não vai guardar;
que se um dia fosse escrita
pra que pudesse ser lida,
do início ao fim da vida
seria marcada igual:
maiúscula no começo,
no fim o ponto final.
Mas quanta interrogação,
espantos e reticências,
nas entrelinhas da vida
contida em seu coração?

Era uma vez um piazito

e um mundo por descobrir,
um medo de faz-de-conta,
bicho-papão pra dormir.
Distintos sons pra lembrar:
do pai, gritos com o gado;
da mãe, vozes de acalantos.

Depois, um viver de espantos

numa terra por povoar.
O ritual das madrugadas
em volta ao fogo de chão;
rodeios, domas, potreadas.

Ainda anão tinha barba

quando veio o "23".
O pai era maragato
e se foi daquela vez,
se juntar a Honório Lemes.
Uma tropilha de zainos,
uma espada, um mosquetão;
lenço vermelho esvoaçando,
junto ao aceno da mão,
dando adeus pra não voltar.
A vida seguindo adiante,
com seus ciclos naturais.
Num gateado de confiança
enfrentou o toro passo
pra um baile, uma carreirada
ou a sombra de um potreiro
na casa da namorada.

Casamento e rancho novo,

onde o amor foi morar.
Muito trabalho
e os filhos,
chegando como andorinhas
pra encher a casa de sons.
Depois a necessidade
de dar escola pra os piás,
a mudança para o povo,
deixando o pago pra trás.

O pago onde deixou nome

como campeiro de lei.

Não nascera esse cavalo

que o pegasse de mau jeito
numa rodada traiçoeira.
Vista e destreza de sobra,
pisava a orelha do maula,
saindo sempre de pé!
Num rodeio era um respeito
quando apartava novilhos.
Amagava na paleta,
de pingo alçado no freio,
tirando "erguido" o franqueiro.

Se o boi olhasse o sinuelo,

bancava o flete no freio,
vinha ao tranco pra o rodeio.

Quando desatava o laço,

podia chegar co'a marca
que o bicho estava no chão.
Seguro e bem a cavalo,
um dia - por patacoada -
passou a mão no cabresto,
num arremedo de laço,
e fez passar a porteira
a zebua caborteira,
na cincha do seu picaço.

Noutra feita, um touro pampa

q7ue refugava o rodeio,
boleou a anca e se veio
atropelando o cavalo.
Livrou o pingo da carga
e se juntou com o touro.
De encontro sobre a paleta
contra aquela massa bruta,
sem deixar virar de frente,
ia baixando o trançado
com toda força do braço.

A polvadeira subindo,

cavalo e touro rodeando
nessa peleia de morte.
Até que num de repente,
co'ajuda de deus e sorte,
o touro-tonto a laçaço -
alinhou rumo ao rodeio.

Tropelias como essa

eram coisas costumeiras.
Levaria horas inteiras
contando essas gauchadas
de quem, em qualquer serviço,
honrou sempre o compromisso
e nunca negou quarteada.

Mesmo sendo ventania,

pelos filhos se fazia
dócil, com voz de veludo,
quando contava uma estória
ou segredava acalantos:
"Dorme criança linda
teu sono doce e puro,
porque não tens ainda
cuidados com o futuro..."
E as mãos ásperas, pesadas,
calejadas pela lida,
eram suaves como asas
acariciando os cabelos
da criança adormecida.

Quando meus irmãos se foram,

buscando rumo e razão,
fiquei ouvindo seus "causos",
vendo seu envelhecer.

Hoje sinto que essa pedra,

com duas datas e um nome,
resume a vida do homem
como num livro fechado.
E, ao relembrar o passado
como minha referência,
nestes versos choro a ausência
de quem fez tanto na vida
que aqui vejo resumida
a um nome com dois sinais:

uma estrela pra um começo

e uma cruz...pra o nunca mais!